O 13 de maio virou feriado, virou placa, virou data cívica. Tem gente que até hoje comemora como se fosse sinônimo de vitória.
Mas eu queria saber — com toda honestidade — quem acordou feliz no 14 de maio de 1888? Quem, naquela segunda-feira, saiu pra rua com um plano de vida? Quem foi acolhido por um Estado que passou mais de 300 anos ganhando dinheiro às custas de sua dor? Quem dormiu sob um teto seguro naquela noite? Quem foi chamado de cidadão no dia seguinte à “liberdade”?
A resposta é dura: Quase ninguém.
A abolição da escravidão no Brasil foi um ato inacabado, sem justiça, sem estrutura, sem respeito. Foi um alívio formal — mas não um recomeço digno.
O dia 13 assinou.
O dia 14 abandonou.
Não houve terra.
Não houve abrigo.
Não houve emprego.
Não houve escola.
Não houve proteção.
Só houve ausência.
E no meio dessa ausência, nascia um Brasil que continuaria tratando o povo preto como problema, e não como potência. Que trocaria a corrente de ferro pela corrente do descaso. Que trocaria o tronco pela pobreza planejada. Que trocaria o chicote pelo esquecimento histórico.
O 14 de maio marca o início de uma nova forma de opressão: mais sutil, mais disfarçada — e, por isso, mais perigosa. O 14 de maio é o símbolo do que o Brasil sempre foi bom em fazer: dar nome bonito pra abandono.
Em 1987, Lazzo Matumbi, com a força ancestral da Bahia preta e viva, escreveu o que ninguém queria ouvir:
“Me disseram que eu não era escravo
E me deram a liberdade
Mas não me deram terra, nem casa
Nem trabalho, nem comida...”
Essa é a síntese do 14 de maio. É a carta que os libertos nunca escreveram porque não sabiam ler. É o grito que ficou preso na garganta porque a fome falava mais alto. A música “14 de Maio” virou hino, porque diz a verdade de um país que só sabe contar a história pela metade.
E não por acaso, do outro lado do mapa, Nina Simone, em 1968, já cantava quase a mesma dor:
“Ain’t got no money, (Não tenho dinheiro,)
Ain’t got no class, (Não tenho classe,)
Ain’t got no nothing… (Não tenho nada…)
But I've got life. (Mas tenho vida)”
Nina e Lazzo, separados por idioma e oceano, dizem a mesma coisa: Nos tiraram tudo — mas não conseguiram tirar quem somos.
Ambos revelam o que a política não admite: Que não adianta decretar liberdade, se o corpo segue sem dignidade. Que não adianta sorrir pra foto do 13 de maio, se no 14 não tem comida no prato.
Dizem que o tempo cura tudo. Mas o nosso país nunca tratou a ferida. E onde não há cuidado, o tempo vira repetição.
Em 2025, o negro ainda é maioria entre os desempregados. Ainda é quem mais morre na mira da polícia. Ainda é quem mais é confundido com suspeito, quem é preterido nas entrevistas de emprego, quem aparece nas estatísticas, mas nunca nas decisões.
O Brasil, 137 anos depois, ainda não entendeu que o 14 de maio não acabou.
A cada jovem negro assassinado, um novo 14 se escreve.
A cada mãe que enterra um filho pela cor da pele, o 14 se repete.
A cada porta que se fecha sem explicação, o 14 se renova.
E pior: não é só aqui.
Nos Estados Unidos, o racismo muda de roupa, mas não de rosto. George Floyd não morreu num dia qualquer. Ele morreu num 14 de maio que nunca foi interrompido. Aquele 25 de maio de 2020 foi um novo 14. Na França, na Inglaterra, na periferia da África do Sul, nos guetos da Colômbia, nos campos de refugiados… o povo preto ainda caminha no escuro de um dia que deveria ter sido o começo da luz.
A liberdade não veio. Ela foi prometida… E vem sendo adiada desde então.
E por que precisamos falar do 14 de maio?
Porque o 13 virou símbolo. Mas o 14 foi silenciado.
E o que não é contado, continua acontecendo.
Porque só se quebra uma corrente quando se reconhece que ela existe.
Falar do 14 é olhar pro lado e ver que ainda há gente invisível. É entender que não basta dizer “somos todos iguais”, se não somos tratados como tal. É ensinar que reparação não é revanchismo. É justiça.
E o que a gente faz com tudo isso?
A gente escuta Lazzo.
A gente escuta Nina.
A gente escuta as vozes ao nosso redor.
E principalmente, a gente para de fingir que a abolição foi suficiente.
O 14 de maio é o dia seguinte de um país que fingiu que tudo estava resolvido. Mas a história não mente: o problema nunca foi só a escravidão. Foi a liberdade incompleta.
E só há um jeito de libertar de verdade: com memória, com verdade, com ação.
•••
Se esse texto te tocou, convido você a ir além, em sinergia. As palavras que escrevi caminham junto das vozes que cantaram, muito antes de mim, as dores e resistências do povo negro.
Lazzo Matumbi, com a força ancestral da Bahia preta, eternizou em música o que foi o 14 de maio de 1888 para tantos: o silêncio, o abandono e a luta por dignidade. Nina Simone, do outro lado do oceano, traduziu em voz e piano o que significa ter sido negada de tudo — e ainda assim afirmar com coragem: “I’ve got life.”
Abaixo, assista aos dois videoclipes.
Escute com o coração aberto.
E, se puder, compartilhe.
Porque a arte também é libertação.
E a música, quando feita de verdade, escreve história.
Lazzo Matumbi – 14 de Maio (Clipe Oficial):
Nina Simone – Ain’t Got No / I Got Life (Live):
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