No dia 23 de abril, o Brasil celebra o Dia de São Jorge, um dos santos mais populares e reverenciados da tradição católica. No estado do Rio de Janeiro, a data é feriado oficial desde 2008 (Lei Estadual 5198/08), mas o culto ao "santo guerreiro" ultrapassa fronteiras religiosas e culturais. O que poucos compreendem, no entanto, é que São Jorge não é Ogum. Nem Oxóssi. E vice-versa.
Essa distinção, embora pareça simples, exige um olhar mais atento sobre a formação religiosa do Brasil, sobre os mecanismos históricos de resistência cultural dos povos africanos e sobre o papel que o sincretismo exerceu — e ainda exerce — na sociedade brasileira.
São Jorge, de acordo com os registros da tradição cristã, foi um soldado romano do século IV, martirizado em 23 de abril do ano 303 d.C., durante o império de Diocleciano. Seu nome aparece em diversos relatos históricos e hagiográficos — como a Legenda Dourada, compilada por Tiago de Voragine no século XIII — que o descrevem como um homem de fé inabalável, que enfrentou perseguições para defender o cristianismo.
A imagem mais conhecida de São Jorge é a que o representa montado em um cavalo branco, matando um dragão com uma lança. Essa figura simbólica tornou-se sinônimo de proteção, coragem e luta contra o mal. No Brasil, ele se tornou um ícone popular — presente em igrejas, terreiros, adesivos de carro, canções e até tatuagens.
Durante os séculos de escravidão no Brasil, os africanos trazidos à força não podiam praticar livremente sua fé. Para sobreviverem espiritual e culturalmente, passaram a associar seus orixás aos santos católicos, numa estratégia de camuflagem chamada de sincretismo religioso.
Nesse contexto, Ogum — orixá da guerra, do ferro, das ferramentas e da tecnologia — foi sincretizado com São Jorge, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste. Já no Norte e em partes do Sul do Brasil, São Jorge também foi associado a Oxóssi, orixá da caça, da fartura, da floresta e do conhecimento, por conta da simbologia do guerreiro e do defensor.
Esse duplo sincretismo evidencia a riqueza e complexidade da religiosidade afro-brasileira, mas também mostra como a necessidade de adaptação às imposições coloniais gerou interpretações múltiplas que, muitas vezes, ainda hoje são reproduzidas sem o devido entendimento.
Atualmente, o Brasil é um país constitucionalmente laico. A liberdade religiosa é garantida pelo artigo 5º da Constituição Federal. Nenhuma fé precisa mais se esconder atrás de outra para existir.
O sincretismo, embora parte inegável da nossa história, já não se faz necessário como estratégia de sobrevivência. E mais do que isso: insistir na fusão de figuras que pertencem a cosmovisões diferentes pode acabar por descaracterizar a identidade e a filosofia de ambas as crenças.
São Jorge é figura do catolicismo, com raízes na tradição cristã europeia.
Ogum é um orixá iorubá, regente da guerra, da força, da ação direta.
Oxóssi é outro orixá, também iorubá, caçador, sábio, ligado à floresta e ao sustento.
Cada um tem sua origem, seu caminho, sua simbologia. E todos devem ser respeitados por aquilo que são — e não por aquilo que foram obrigados a parecer ser.
Em tempos de intolerância e superficialidade, conhecer a própria religião — e as demais — não é apenas um ato de fé, mas de cidadania. Saber que Ogum e Oxóssi não são São Jorge, que Iemanjá não é Nossa Senhora da Conceição, que Xangô não é São Jerônimo, que Exú não é Diabo, é também compreender que o Brasil é um país de muitos credos e que respeitar a diversidade começa pela informação.
Misturar essas referências sem estudo ou reverência não é só um erro histórico — pode ser um desrespeito involuntário, mas ainda assim grave.
A convivência entre as crenças não precisa se dar pela confusão, mas pelo diálogo, pelo respeito e pela compreensão.
O Dia de São Jorge continua sendo uma data de fé, coragem e proteção para milhões de brasileiros. Mas talvez seja também uma boa oportunidade para reconhecer a pluralidade religiosa do nosso país e honrar cada tradição em sua essência.
Não precisamos mais esconder um orixá atrás de um santo.
Não precisamos mais apagar a história para sobreviver.
Hoje, podemos — e devemos — viver a fé com liberdade, consciência e respeito.
Que cada um possa, neste 23 de abril, refletir não apenas sobre o guerreiro que inspira sua devoção, mas também sobre o papel da sua religião na construção de um Brasil mais justo, mais tolerante e mais informado.
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